Se alguém tentar perceber as nossas conversas de fora, não vai perceber nada. Aninhamos a nossa cumplicidade dentro de um sentido de humor que oscila entre o cultural, o social e o absurdo total. Rimo-nos que nem perdidos dos disparates um do outro. Ele esquece-se. Eu lembro-o. Eu repito-me. Ele não se recorda. E quando damos por isso, estamos a rir pela quinquagésima vez daquela piada do Allallallallallon em frente da Embaixada dos Estados Unidos, ou a interpretar pela enésima vez o comentário “Ballack’foi golo”.
Alivia-me o peso que cai sobre os meus ombros quando me pergunta como vai o Xá Ali Baba. Só precisamos de dois e-mails para roubar todo o sentido à conversa, dois segundos para que a sanidade entre em colapso desenfreado. Ele diz que eu tenho uma obsessão pela simetria. Eu digo-lhe que ele está sempre com fome, com sono e que é trapalhão como não há igual. Somos conhecidos pela nossa pancada por temakis de salmão (sem queijo!). Troca os nomes de tudo. Chama Cornucópio ao Procópio e diz ao senhor simpático que lá trabalha que eu sou a maluquinha das pipocas (mentira!). Em vez de uma Conchanata clássica: baunilha, morango e nata!, acha por bem juntar numa mesma taça limão, café e manga, além, claro, do molho de morango que dá nome à casa! (ao menos, a sandes de frango e banana só a experimentou uma vez...) E ninguém faz melhor dueto que nós a interpretar Bohemian Rhapsody, versão Queen: «I see a little silhouetto of a man, Scaramouche, scaramouche will you do the fandango… Bismillah! We will not let you go – let him go… Mama mia, mama mia, mama mia let me go…Beelzebub has a devil put aside for me, for me, for me… Galileo, Galileo, Galileo let me go…». Ah, e só mesmo ele para, depois de duas litradas de cerveja e meia dúzia de Würsts com batatas fritas, se aventurar na montanha russa da Frühlingsfest. E eu vou atrás... ("Audácia! Arrojo!" E tão má ideia...)
Passamos uma noite na Golegã (e eu até acho que ele tem medo de cavalos): ele faz do jogo de pólo um relato de futebol, pomos às voltas dentro de nós algodão doce, ginginha em copo de chocolate, farturas, cerveja, castanhas, pacotinho energy da Agel, e jantamos entremeada e entrecosto num “estabelecimento” que levaria qualquer 007 da ASAE ao rubro.
Baseamos a nossa amizade numa competitividade constante: o Milan dele dá cabo do meu Chelsea (normalmente…), a minha técnica tenista é superior à violência com que ele afasta a bolinha amarela, ele humilha-me no xadrez, eu ganho nas damas por um triz, também lhe ganhei uma vez ao berlinde, mas ele tem claramente melhor ouvido do que eu e adivinha sempre primeiro as músicas que a rádio toca, nos matraquilhos estamos even, no ping-pong, enfim, no ping-pong não comento. Ah… E ainda há os passeios de bicicleta. Eu deslizo entre as ruas e as pessoas. Ele desmonta para descer o passeio. Mas, verdade seja dita, em batalhas de bolas de neve, a pontaria afinada é a dele. Nas setas também (eu só tenho garganta!).
Em Estugarda apostávamos tudo em Beck’s Gold (logo depois de termos descoberto que a Weissbier tinha caldo Knorr lá dentro e que isso não nos agradava). Agora competimos só por competir. Só para nos rirmos um do outro.
Estugarda é um sítio que eu não escolheria para viver. Tem sítios bonitos, isso tem. Mas, fora o agradável centro histórico (o que sobreviveu), aquele mercado em jeito de clássico da Walt Disney, a Hauptbanhof (há qualquer coisa nas grandes estações de comboio que me enche os olhos...), a livraria da "Rua do Rei", a Calwer Eck Bräu e a praça em que o Schiller parece esperar o amigo Goethe, não se enquadra na arquitectura pitoresca que alimenta o meu imaginário. Mas foi lá que, de implicância a implicância, competitividade a competitividade, absurdo a absurdo, nos conhecemos e nos tornámos naquilo que somos hoje: Bruno e Graça, eu e eu, ele e ele.
Em Estugarda, a mente brilhante que liderava o FanCamp resolveu um dia mandar o Bruno montar tendas. Esse dia tornou-se uma semana. Único rapaz entre duas ou três estagiárias, o trabalho pesado de carpintaria sobrou para ele (logo ele que tem tanto jeitinho de mãos…). Ao quarto dia, decido que o mundo está de pernas para o ar e vou montar tendas também: «Oh Graça, eu não quero que venhas!», «Bruno, deixa-me! Estou a marcar uma posição!» (os meus momentos de coragem são poucos – pensei, deixa-me aproveitá-los). E assim foi.
Passámos esse dia à chuva – aquela chuva miudinha a cair sobre nós todo-o-santo-dia...! Ao almoço alguém foi buscar uma pizza desengonçada, sensaborona, quase tão precária como a sala escolhida para a refeição. Água: só com gás e sem ser fresca. Discutimos e irritámo-nos um ao outro. Ele ensinou-me a manejar o berbequim (nem tudo foi em vão). Carregámos tábuas maiores do que nós para trás e para diante. Magoámo-nos porque os nossos mitarbeiters alemães não estavam familiarizados com o conceito “devagarinho”. Pregámos algumas tábuas (pobres das criaturas que iam dormir por ali!). E o dia chegou finalmente ao fim. Eu tinha marcado a minha posição (confesso, não com o melhor feitio do mundo…), mas tínhamos passado o dia na companhia um do outro.
Ao voltar para casa, a caminho do U-Bahn, sobre uma das pontes que atravessa o rio Neckar, e envoltos em toda a neura e cansaço de um dia para esquecer, comecei a trautear baixinho: «Eu perdi o Dó na minha viola… na minha viola eu perdi o Dó… Dormir é muito bom, é muito bom, dormir é muito bom, é muito bom…» E cheguei ao refrão. Quando dei por nós, estávamos os dois em ritmo e sintonia aos pulos no meio da rua «É bom camarada, é bom camarada, é bom, é bom, é bom!». E depois rimo-nos que nem dois parvos da dança improvisada que fizemos de uma cantiga infantil que faz agora parte da banda sonora da minha experiência suábica.
Depois continuámos o caminho até casa a suspirar e a queixar-nos da nossa sorte...
Hoje ele diz que não se lembra do episódio. Aparentemente, mexe com a sua obsessão pela masculinidade. Mas eu lembro-me bem. É das lembranças mais... bonitas que tenho daqueles seis meses.
«Com um brilhozinho nos olhos guardei um Amigo, que é coisa que vale milhões…»