Wednesday, November 29, 2006

À máquina...

Deixou de trocar-se correspondência... Já não se enchem folhas de papel com palavras desalinhadas, com uma pena molhada em tinta ou simplesmente com uma caneta... Já nem as Bic servem para isso...
As caixas de correio enferrujam porque têm saudades de sentir o cheiro da mão que escreve nas folhas que são obrigadas a engolir... Já esquecem a imagem dos selos com a figura de reis, viagens, cidades, terras, navios e povos...
É tudo à máquina - as letras são de máquina, cuspidas de uma hewlett packard, o selo é cuspido de um aparelho dos CTT a que ninguém dá nome e colado com um murro seco, os envelopes sao produzidos à máquina tão perfeitamente geométricos que até chateia, selados com a maior das impessoalidades e sem o vermelho do lacre. O cheiro é a máquina! Cada vez menos as pessoas deixam algo de si na ciber-correspondência que trocam. O trabalho com ela é cada vez menor. Até já se inventaram as cartas-modelo para que se perca o menor tempo possível nesta prática ultrapassada. A arte da correspondência tornou-se hoje um processo completamente mecanizado, uma cadeia de produção ritmada ao som da percussão das teclas do computador (outra máquina!!).
Mas eu quero escrever cartas... Quero que se saiba que fui eu que escrevi aquela carta porque é a minha caligrafia com as suas linhas imperfeitas, as rasuras em palavras que se começaram a escrever mas que depois se achou não ser a mais certa, talvez uma borratura a um canto, porque a bochecha da minha mão deslizou suavemente por uma sílaba de tinta ainda fresca.
Hoje vi o meu Pai a subir a Artilharia 1, espreitar para o enferrujado portão do velho Colégio dos Maristas onde andou, um bocadinho mais adiante espreitar pela janela da casa onde dormia o porteiro. "Ele pintava aqueles barcos... Era um artista..." Mais em frente, quase na esquina com a Joaquim António de Aguiar estava o sítio onde ele cortava o cabelo quando vivia ali perto: "Um dia vim aqui cortar o cabelo e quando cheguei a casa o Avô Borges mandou-me cá voltar para cortar mais porque ainda estava muito grande. E ali logo a seguir, onde está o toldo da Segafredo, era onde eu comprava batatas fritas". Depois foi continuando a descer até ao Marquês, olhando em volta como se fosse a primeira vez que pisava aquela calçada. Fotografando a Lx que já se despediu da Lisboa dos seus tempos de menino. Quando a vida ainda não se fazia à máquina.

3 Comments:

Blogger Makejeite said...

Divinal minha querida, absolutamente divinal. Um deleite, soberba prosa esta, heim, soberba. Que inveja, que inveja eu tenho.

10:55 PM  
Anonymous Anonymous said...

Pois é. tudo se perde...Já não se escrevem cartas de amor ámão quanto mais das outras...Gostei de me passear em memórias pela tua mão.
Abraço cheio de memórias

10:23 PM  
Anonymous Anonymous said...

Ainda não tinha lido este! Está demais! Acredita que me vieram as lágrimas aos olhos! Também eu começo a sentir saudades da velha Lisboa e ainda sou tão novo! Viva o fado e as ginginhas!

5:39 PM  

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