Thursday, September 06, 2007

“Tive a’tilal Lalanjas po teu Quintal!”

Gaiato pequenito, louro, dentinhos marotos. Trocava o tamanho pela imaginação. Nos momentos de descanso, breves e inesperados, cozinhava ideias que ferviam em combustão rebelde. Os olhos que brilhavam e as mãos que se esfregavam revelavam mais uma diabrura cuspida da panela de pressão.
Aquele jardim que o tempo se encarregara de envelhecer, era palco agreste e costumeiro das suas travessuras. As árvores cansadas e corcundas vinham a pingar fruta desde o início da estação. Era um tapete de terra e ervas amuadas, que com laranjas aqui e ali, limões cá e acolá, parecia ter reunido os velhotes do café do beco mais fundo, numa daquelas partidas de malha que transformam a tarde em noite.
O quintal vizinho parecia atraente. Não pelo seu exotismo, beleza tropical ou vestes idílicas, porque, não estando jogado ao abandono, parecia tão confuso e só como este que se desfiava por Outonos e Invernos e contava apenas com a bondade da chuva e as festinhas do vento para compensar o esquecimento humano.
Mais atraente ainda era a ideia de incomodar a vizinha. Já tinha engendrado mil e uma geringonças temperadamente maliciosas para irritar a senhora, só que tinha que contentar-se com as delícias do abstracto porque nunca tivera a oportunidade de puxar a manivela que punha essas geringonças a funcionar.
Mas… Era uma maçada aquele muro… Eram precisos dois dele, para se assomar e espreitar … Oh! Que disparate! Não era a primeira vez que se via obrigado a desencantar no meio das tralhas encavalitadas entre o mofo da arrecadação, um caixote de madeira húmida e bolorenta que lhe servisse de escadote e aumentasse o campo de visão. Cá está ele! Entre um arrasto e outro, uma batida leve, um pontapé mais forte, testa-se a carapaça do novo aliado. Está pronto para fazer parte da audaz investida!
Uma lalanja neste bolso, outra lalanja no outro, e com a t-shirt larga, que lhe ficara do irmão, fez como que uma alcofa onde juntou todos os petrechos. Ena! Tantas lalanjas!! E agora... Toma lá! Uma, outra, outra, e ainda esta! Mais aquela, e a outra, e esta, e ainda outra!!!
Ah Ah! Que maravilha! Era terrível o miúdo! E deliciosa a sua gargalhada enquanto via as lalanjas tornarem-se sumo de lalanja! O toque áspero e frio dos pesados cubos de calçada era agora peganhento e escorregadio, rendidos que estavam à polpa da lalanja! Pareciam vir de todos os lados!! Mas era só a criatura de dentes de leite que impulsionava com toda a sua (pouca) força o arsenal de Vitamina C!
Mas toca o alerta! (Não, tocar não toca, porque as diabruras é melhor que se as faça sozinha, por ser a melhor maneira de escapar impune aos juízos da Senhora Educação.) Então, não toca o alerta mas alerta que vem aí a Velha!
A criança quer fugir mas os pés são ainda trapalhões, o medo faz tremer o corpo, os olhos esbugalhados do susto não deixam ver nada. Cede a madeira perante a humidade e o bolor, e tropeça a criança no seu próprio aliado!
Quando abre os olhos, estendido no chão, tenta resistir ao Sol, mas eis que uma sombra de velha, de bruxa, de malvada, agarra no sol, esconde-o no bolso, leva mãos à cintura, e de voz estremecedora, confronta-o em expressão de ameaça: «O que é que estás a fazer?!». Já foi apanhado, há pouca saída… Mais vale desembainhar espadas e coragem, e continuar a brincadeira: «Tive a atilal lalanjas po teu quintal!». Não percebe a vizinha a sinceridade infantil, recorda-se que há meses que não limpa os ouvidos, e pede à criança que repita. Esta fá-lo pacientemente: «Tive a atilal lalanjas po teu quintal!». «Ora bolas», pensa ela, «Na querem lá ver que ‘tou precisando d’um aparêlho?!», e mete o dedo mindinho (que nela é Mindão!) quase no tímpano e roda e desroda como quem desenrosca o parafuso mais enroscado. Entre uma careta e lábios subidos, insiste a criança espaçadamente:
«TIVE-A-ATILAL-LALANJAS-PALA-O-TEU-QUINTAL!!!»
«Ai, bandido!!!», e agarra-o pela orelha ao petiz, leva-o a casa, bate brusca e bruta à porta, e chama pelo Pai do audacioso aventureiro. Narra o episódio com todo o rancor e repreende a ineficácia da sua educação. A raiva é tanta que, ao falar, não fala, brada!, e toda se cospe! Salpica fugaz e voraz a barba de dia e meio do Pai da criança e obriga-o a zangar-se com o garoto. O homem, que carregava aos ombros um dia de trabalho, diz à criança «Não voltes a fazer isto». Vira as costas e volta para dentro. Leva no rosto um largo sorriso. Levanta os olhos ao Céu e reza com força, pedindo ao Senhor que na próxima vida abençoe aquele jardim com as maiores das melancias.