Wednesday, April 25, 2007

Eu tinha grandes planos para a Quinta…

Primeiro ia correr mundo e fazer fortuna. Não me levem a mal, não sou ambiciosa, mas desde miúda que tenho bem a noção de que aquele baú de memórias que desde o Monte Molião observa Lagos ao longe vale uns valentes tostões.
Então sim. Ia correr o mundo. Recolher experiências aqui e ali, atá-las com uma guita e trazê-las às costas no regresso juntamente com a tal fortuna.
Comprava a Quinta e o negócio fechava-se em família. A partir daí ia desenhando os seus muros e paredes, as suas portas e janelas, o seu telhado e a chaminé, a sua torta calçada, à semelhança de cada lembrança.
Dava cor às paredes rasgadas da casa, cobria os arranhões de tantos anos de branco e pintava os lábios das janelas a azul. Envernizava a madeira das portas, mas deixava o ranger confidente, esse ranger soa a antigo, soa-me bem. Ao telhado sobre o alpendre devolvia-lhe a vida, que ele há anos que tenta beijar o chão. E nas grades onde o Sr. Viegas desistiu de tudo, devolvia-lhes o verde vivo e robusto e o brilho que ecoaria até ao outro lado de Lagos.
Os muros que separam a Quinta da estrada, que circundam o pequeno jardim com árvores de frutas, que separam os pequenos campos ao longo da propriedade, e que costumavam cercar os animais para que não fugissem por aí doidos pelas ruas de Lagos, voltaria a erguê-los. Acho que há anos que eles vêm adivinhando o seu triste fim, então têm vindo também gradualmente a desistir, a desmoronar… Mas não! Nos planos que eu tinha para a quinta, estes muros voltariam a ser duros, rijos, ruins de deitar a baixo! Nem uma pedrinha de areia eu deixaria que se desfiasse. Afinal de contas, as figueiras continuam a dar figos, as romãzeiras brotam as suas romãs, a palha continua a ser enfardada, os animais continuam a pastar, e há que velar por todos eles porque há por aí muito bandido a arriscar a liberdade por um figo do Monte Molião.
Entretanto, poria fim à soberania das ervas daninhas. Estão agora tão grandes que parecem ambicionar destronar as oliveiras das suas alturas. Mas isso, com uma enxada damos-lhe a volta. Paz às suas almas, mas é que na tela que eu pintei da quinta elas não têm lugar.
Em cada canto deste lugar encantado voltaria a haver vida. As galinhas voltariam a digladiar-se pelas folhas de espinafres que deitaríamos para dentro do galinheiro para espicaçá-las, um ou outro galo anunciariam de novo a madrugada sem se saber bem de onde, os coelhos sem conta regressariam àquele armazém forrado a palha, as vacas e os bezerrinhos aconchegar-se-iam outra vez no estábulo que sempre lhes pertenceu, o Sr. Manel voltaria a dar uso às latrinas de leite das suas vaquinhas, o Sr. Joaquim olearia os motores e ferros das máquinas agrícolas e voltaria a passeá-las pelos campos e a cultivar o que quer que fosse, e o João Borralho continuaria a meter o bedelho em todos os assuntos da quinta e a carregar sacos de tudo e mais alguma coisa para trás e para diante. Na casa do Sr. Joaquim voltaria também a haver aquele pão fresco que ele partia com a mão e que partilhava comigo todas as tardes, esse pão que não encontro igual. Enfim, o Molião voltaria a ter sentido.
Imortalizava a lenda de que na casa da bruxa havia uma bruxa que tinha um gato preto e um caldeirão sempre a ferver, e de que no fundo do poço havia um gigante que saltava cá para fora se nos assomássemos a espreitar a água lá no fundo.
Deixaria no jardim a mesma mangueira amarelada do tempo que tantas vezes nos tirou a areia dos pés e do corpo no regresso da praia, e todos os dias regaria as flores e as árvores e sentiria com gosto o cheiro a terra molhada.
Todos os dias também espreitaria pela janela e encontraria espelhado no vidro o meu sorriso ao ver o Frederico a correr pela ladeira abaixo a gritar que tinha visto uma cobra, o Felipe a procurar comigo um bom esconderijo, a Teresinha a pentear as bonecas no banquinho do quintal, a Mãe a sacudir energicamente sacos, pés e toalhas, e a dar-nos uma mangueirada de água fria sem piedade, para que nem um único bago de areia tentasse recriar a praia dentro de casa, o Pai a soprar esbaforido o seu apito “von Trapp” para reunir as tropas na hora de jantar. E à Méme veria com certeza empoleirada no muro do jardim a roubar nêsperas sempre com o seu cuidado de não interromper a digestão. A música seria sempre a mesma: o riso da Avó Graça e a sua voz ternurenta a dizer “Olha a minha neta!”, ou a contar as aventuras do Touro Azul…
Mas agora a quinta foi vendida. Provavelmente dará lugar a um daqueles condomínios gémeos que têm no preço aquilo que não têm em histórias. Talvez daqui por uns milhares de anos, quando o Monte Molião voltar a ser monte, algum arqueólogo curioso desenterre acidentalmente uma fotografia, um brinquedo partido, um berlinde perdido, uma bola furada… Enfim… Um rasto daqueles que foram dias tão Felizes.

Sunday, April 15, 2007

Chaminés Algarvias

Procurei algures numa feira baratucha uma bicicleta como eu. Que se movesse a pedaladas antigas. Encontrei-a. E hoje levei-a a passear por Lagos. Não pela cidade, mas pelas novas urbanizações "arborezadas" nos caminhos que vão dar às praias. Impressionante como crescem por todo o lado casas que não sendo propriamente feias parecem não se entender umas com as outras. Como se uma 'mesa-redonda' reunindo pessoas que simplesmente não falam a mesma língua. Uma velha Torre de Babel. A maior parte não são de facto feias. Tentam colorir-se suavemente, como que deixando o vento pincelar tons de amarelo, rosa, laranja e até branco. Mas variam nas formas, e as formas por vezes chocam umas com as outras... Onde umas crescem e criam janelas em cilindros de tijolo, outras arranham-se em rectângulos que quase tocam as vizinhas em tom de provocação.

Mas estas casas estranhas têm algo em comum. Dão as mãos umas às outras a partir de um telhado sempre mais ou menos tradicional. Todas erguem para o céu a mesma chaminé algarvia. São todas iguais. Aquela mesma chaminézinha que percorre vilas, aldeias e cidades, e até casinhas isoladas nos montes e serras do barlavento ao sotavento, e que é facilmente reconhecível nos livros de geografia da escola. Uma mancha preta que denuncia cozinhados apetitosos à moda da região. Uma caractetística pitoresca no meio de arquitecturas tão adversas umas às outras. Essa chaminé algarvia que nos convence de que no meio dessas casas tão diferentes umas das outras, tão diferentes de nós, ainda há um sopro ligeiro do antigamente. Alegra-me a ideia de que sim, ainda estou no Algarve mais rústico e não no algarve turístico que atrai milhões em época de veraneio mas que afasta infinitamente os outros que lá cresceram, entre corridas na praia, pescarias em alto-mar, trapézios em amendoeiras em flor e a tez bronzeada do sol.

O passeio continua. O caminho atribulado de terra quase batida despede-se das urbanizações novas da cidade e dirige o pedalar trapalhão da bibicleta centenária até ao mar. É o vento e a brisa que a puxam agora, porque o pneu já vazio e os músculos já cansados pouco fazem pelo movimento. De novo a estrada, o asfalto. O trânsito - nenhum. Ao fundo acena-me o farol da Ponta da Piedade. Finalmente lá, entre um cafézinho e uma barraquinha para turistas semi-vazios, o mar e o abismo cada vez mais perto. Dou repouso à minha relíquia e aproximo-me quase tanto quanto posso. À minha frente só o Mar. A sua cor. O seu fresquinho. As rochas que se impõem do meio dele. Uma gaivota ou outra que providenciam a banda sonora. Tenho vontade de abrir os braços, fechar os olhos e respirar bem a fundo aquilo que o Atlântico me devolve. E aí, penso eu, nem as chaminés algarvias fazem falta para me lembrar de que sim, eu pertenço aqui!