Sunday, February 04, 2007

Ensaio sobre a Simplicidade

O seu nome era João da Silva, mas gostava que o tratassem por João. Na correspondência que trocava assinava com um J. Na rua sorria com facilidade, ao senhor do Quiosque, o Sr. José, às irmãs da mercearia, a Maria e a Luísa, ao rapaz das castanhas, o Joaquim. Sorria quando lhe sorriam, e quando não o faziam era ele quem sorria, iluminando as expressões mais severas. Deixava as senhoras passar à frente, abria-lhes a porta galantemente e acenava com a cabeça em jeito de respeitoso cavalheiro.
Gostava de tratar tudo e todos por aquilo que eram. O varredor de rua que costumava apurar a calçada em frente ao seu prédio era para ele um varredor. Para o homem que vivia na porta em frente, um empresário bem sucedido, exageradamente formal e até petulante, era um “técnico auxiliar de controlo e limpeza urbanístico”. Bonito nome. Mas só o João da Silva é que sabia que esse técnico auxiliar de controlo e limpeza urbanístico se chamava Artur, era casado e tinha duas filhas, uma delas já com um pé na faculdade.
Mantinha os pés bem na terra à mesma altura que os demais. Não olhava para ninguém desde cima, nem desde baixo, mas de frente. O modo como se vestia entreabria um certo desinteresse, e o cabelo desalinhado contrastava com o gel usado pelo vizinho da frente. Falava com este e aquele e todos o percebiam. Não usava cá palavras caras, gostava de ser entendido. Não pretendia deixar ninguém boquiaberto com a riqueza e exuberância do seu vocabulário.
E o João lia, cultivava aquilo que de mais português há na nossa cultura. Declamava os Lusíadas e os Autos de Gil Vicente pelos corredores de sua casa, lia Eça com paixão, fechava os olhos para ouvir a voz de Amália e bebia cada verso, respirava cada Fado. Mas não gostava de palavras estranhas. Nunca se tinha candidatado à função pública porque as candidaturas mexiam com o seu sistema nervoso. Detestava ser um requerente numericamente classificado a pedir deferimento para ingresso para provimento numa determinada categoria concursada! Não fazia ideia de quem escrevia tal coisa, mas gabava-lhes a imaginação.
Apaixonava-se poucas vezes. Sabia quem procurava. E encontrou-a mais do que uma vez. À terceira agarrou-a e não a deixou fugir. Lia-lhe baixinho histórias que em tempos ouvira da sua avó. Não dizia “Amo-te desalmadamente minha flor esbelta e brilhante, és tudo para mim”. Dizia-lhe simplesmente “Gosto de ti”. Não lhe oferecia um ramo de flores gigante com rosas, e orquídeas, e dálias, e toda e mais alguma espécie botânica que se vendem ao preço do ouro nas floristas de Lisboa. Oferecia-lhe uma flor que roubava traquinamente no jardim ao lado de casa. Não pintava o seu amor a vermelho. Mas de várias cores consoante o dia. No meio das pessoas não demonstrava descaradamente aquilo que por ela sentia, preferia segurar-lhe discretamente a mão, e nela deixar um beijinho tímido quando ela menos o esperava.
Era simples nos gostos e na vida. E era a sua simplicidade a sua maior grandeza.

8 Comments:

Blogger Astor said...

E eu simplesmente na minha simplicidade não entendi este simples ensaio.

7:45 PM  
Anonymous Anonymous said...

Na minha simplicidade este é simplesmente um simples ensaio...

12:46 AM  
Blogger Concha said...

Pois eu gostei muito deste texto. Dá gosto ler-te!

6:02 PM  
Blogger Makejeite said...

Já cá tinha posto um comentário que apagaste porquê?

10:03 PM  
Anonymous Anonymous said...

Adorei este texto! És simplesmente um espectáculo!!

6:45 PM  
Anonymous Anonymous said...

Adorei este texto! És simplesmente um espectáculo!!

6:45 PM  
Blogger Tiago Cabral said...

Parabéns Gracinha.

3:12 PM  
Blogger Fátima Santos said...

estou encantada!

9:11 AM  

Post a Comment

<< Home