Thursday, December 06, 2007

O “Ora muito bom dia” do Sr. Afonso

No vidro do carro as gotas grossas da chuva dispersam-se. É o fim do seu caminho o meu carro. Observo como os bocadinhos de água de uma gota se despedem uns dos outros, tomando direcções opostas na minha janela. Sigo uma delas com o dedo. O trânsito lá fora permite-me brincar com a chuva. Estou parada. No sinal, na fila, não sei.

Uma buzinadela forte acorda-me ao mesmo tempo que a gota que eu seguia se divide em duas, que se dividem em duas, e que são já oito antes de desaparecerem.

A buzinadela volta a manifestar-se. Afinal de contas, foram três os segundos de distracção. Não importa. Na selva que é o trânsito aprende-se a fazer ouvidos moucos. A seguir há outro sinal. Perco-me a observar as caras já tão cansadas mesmo estando o dia na sua alvorada. Caras tristes, zangadas, apáticas, irritadas. Cabelos já desengonçados, expressões já escuras, gestos já feios, atitudes severas. Oh gente!, então?! Isto ainda agora começou!


Levanto o volume da minha música, aquela que não toca em mais nenhum daqueles automóveis mal-encarados, e canto bem alto. Ninguém me ouve. Para eles sou só uma rapariga nova meio doida a cantar alto dentro do seu carro. “Dão carta a toda a gente”, pensam. Paciência!


Foram trinta os minutos em que ziguezagueei pelas ruas entupidas de Lisboa, fugindo ao trânsito pelo trânsito. Estaciono, dou de beber ao parquímetro (e à dor!), e entro no prédio da agência.

“Ora, muito bom dia!”, diz-me o sorriso simpático do Sr. Afonso, um sorriso que sacode com energia a mão envelhecida. “Como está a menina hoje? Menina ou senhora?! Então já teve um longo caminho até aqui? Vive longe, é?! Então bom trabalho!”.
E é assim que todos os dias deixa de chover lá fora.
O Sr. Afonso é o novo porteiro. Trabalha há 50 anos como porteiro, mas àquele prédio da Avenida da Liberdade acabou de chegar. Vive no Campo Pequeno. “Há 55 anos que vivo no mesmo prédio! Fui para lá estreá-lo e ainda lá estou”, contou-me ele. “Aquilo agora está muito bonito, está como era no meu tempo”. O seu sorriso sempre pronto contrasta com o do antigo porteiro.

Esse não era má pessoa, coitado, mas estava de mal com a vida. Tinha os olhos de quem estava sempre não só chateado, mas profundamente zangado e irritado. Era um daqueles veteranos de Guerra Colonial com o amor pela Pátria estampado no braço, benfiquista revoltado – daqueles que mesmo quando o Benfica marca golo grita exasperado “E ia falhando!!!” –, com ténis da Puma, mãos nos bolsos, e sempre a resmungar qualquer coisa entre dentes. E nem era com ninguém em especial, era com a vida! A vida era uma chatice! Mas esse porteiro foi-se embora, para trás nem o nome deixou.

Foi-se embora ele e veio o “Ora muito bom dia” do Sr. Afonso.
Diz bom dia e boa tarde com gosto.
Virou a mesa para a porta para poder viver a rua.
Pôs uma planta à entrada para lhe dar uma cor de boas-vindas.
Varre o passeio à frente da porta e limpa o pó das campainhas.
Gosta de saber o nome de quem ali trabalha.
Distribui sorrisos e recolhe-os de volta.
Diz que está frio e que a chuva faz falta.
Aquece aquela entrada com o seu “Então como está hoje?!”

A portaria tornou-se agora uma passagem agradável entre a selva que é o trânsito na hora de ponta das manhãs e as horas de trabalho. No regresso ao rés-do-chão encontro de novo o Sr. Afonso. “Vai almoçar, vai? Então bom almoço Menina!”.


E é assim que, desde que o Sr. Afonso se mudou para aquela portaria, eu saio daquele prédio sempre a sorrir. Na Confeitaria vizinha pensam os clientes do costume que à montra engolem a sopa e o café em excesso de velocidade: “Olha, lá vai a louca que sai daquela porta sempre a rir!”.


Eu não me importo. Tivessem eles o “Ora muito bom dia” do Sr. Afonso a aconchegar o seu expediente e talvez assim quisessem, quiçá, ser loucos também.

Sunday, December 02, 2007

Contrato de Bignorâncias

Precisamos de alguém a quem fazer perguntas estúpidas. É verdade! Precisamos.
Alguém que não nos faça sentir o ser mais ignorante que Deus pôs no Mundo quando temos que desfazer, cortar ou esquecer aquele incomodativo nózinho que nos mói a cabeça, martela baixinho, puxa os cabelos e, pura e simplesmente, nos DÁ CABO DO SISTEMA NERVOSO...! Como aquela torneira antiga, pintada de calcário, seca, mas que teima em ser torneira e como torneira manter-se no activo e que por isso passa horas inteiras de dias e noites a fio, gritando a sua condição de torneira: "Ploc...! Ploc...! Ploc...! PLOC!!!!!!"
Então, como dizia, precisamos sempre de alguém a quem fazer as perguntas estúpidas e básicas que - desenganem-se! - todos temos. Convém é ser só uma pessoa, duas, não mais do que três, porque espalhar por aí o leque de perguntas "dois-mais-dois-igual-a-quanto-mesmo-pontodeinterrogação" é capaz de generalizar pelo povo, pôr na boca do mundo, uma imagem que não queremos de todo passar.
Às vezes nem é uma pergunta "cheia" ou "completa", não é totalmente uma pergunta. Às vezes é só uma duvidazinha ligeira que nos sopra ao ouvido e nos separa do clic do "Ah, já sei!". Mas sabemos que esse clic é básico, óbvio, de senso comum, que toda a gente sabe. Menos nós. Ou se calhar sabemos mas não temos bem, bem a certeza. E é uma chatice não ter bem-bem a certeza.
E é por isso mesmo que precisamos a nosso lado daquela pessoa de confiança com quem estamos à vontade para corar, gaguejar, meter o pézinho na poça, tropeçar, passar por tontinhos de vez em quando, e por aí. Quanto mais não seja, porque o contrato é bilateral, a faca tem dois gumes, a corda duas pontas, e essa pessoa também tem com toda a certeza o seu molhinho de perguntas absurdas.
"Contrato de Bignorâncias", chamemos-lhe assim. É um fifty-fifty de fiascos de raciocínio ocasionais, uma aconchegante cumplicidade na nossa percepção de seres humanos a anos-luz de calcar todas as léguas do conhecimento. Ou seja, animais que não sabem tudo.
Posto isto, um bem-haja a essa pessoa que cada um de nós tem sempre à mãozinha e que nos dá um bocadinho de lume quando somos assaltados pelas absurdas interrogações do Óbvio. Que toda a mão-cheia de perguntas estúpidas fiquem sempre só entre nós!
Já agora e antes de me ir embora, mas porque é que neste mundo, a Água e o Azeite não há meio de se misturarem...?!