Friday, May 23, 2008

O Golpe das Telhas da Lançarote de Freitas

Tinham pensado em tudo. Arquitectaram o plano perfeito no meio de uma conversa com o velho Jack Daniel’s que se prolongou até à alvorada e agendaram-no para a madrugada do dia seguinte.

Era um plano sem espinhas. Simples. Perfeito.

A noite começaria na tasquinha da Rua do Jogo da Bola. No meio de tão inebriada companhia construiriam o seu álibi. Quem é que daria conta da sua ausência entre o chocalhar dos brindes – Libiamo! Libiamo! – e um dia seguinte furtivo numa daquelas valentes ressacas? (Noites alegres, manhãs tristes…) Só talvez os jarros despidos de vinho. Mas esses não falam.

Escapulir-se-iam de fininho pela porta da frente da tasca e voltariam para casa: Rua Lançarote de Freitas, número 8. Mais cedo do que o costume mas um pouco mais tarde que o normal. Entrariam sorrateiramente pela porta principal. Eles não tinham NADA a esconder!!!

Mentes astutas, malévolas e expeditas, saltariam para o jardim pela janela. A porta da cozinha estava perra, teimosa e bradava que nem uma mula quando alguém a obrigava a fazer o seu serviço – abrir e fechar. Além disso… Eles não receavam a agilidade de um salto. Afinal de contas, estavam já nos seus quarenta – os cinquenta estavam à porta – e não se queriam esquecer de como voar.

Até aqui, tudo como previsto.

Depois de um salto em tesoura (que até poderia ser considerado artístico se não tivesse sido tão atabalhoado), lá foram avançando, devagarinho, protegendo as costas de um e de outro, cada qual o mais desajeitado. Mas quem poderia censurá-los? Era o seu primeiro golpe, e só se tinham visto na necessidade de levá-lo avante por causa de um tecto que se abria à chuva em dias de vendaval.

Lá atravessaram a varanda, escorregadia pelo frio que repousava no mármore. Estava escuro. Tão escuro. Aquele escuro que sempre o inspirava:

«- Vai alta a Lua! na mansão da morte…!»
«- Shhhhhhhhhhhhht!», calou-o o outro!

Amadores… Que diabo! Agora não era o momento! Nem para baladas! Nem para noivados! Nem para Passos!

Depois da breve - e despropositada! - inspiração romântica, continuaram… Desceram a escadaria do jardim. Em baixo fogueteou um gato preto – mau agoiro! – aquele que ia à frente deixou fugir um suspiro ameninado que o envergonhou tanto quanto regalou o sócio.

Amadores… Que diabo! Não havia tempo para brincadeiras.

Continuaram. Sentiam-se temidos e temíveis. E logo atemorizados quando uma janela bateu. Pararam – eles e o seu coração de larápios principiantes – e puseram-se à escuta. Duas estátuas de rua que sucumbem ao vento. E aí ouviram:

«- JÁ LEVASTE O LIXO PARA BAIXO?!»

Mas como é que é possível?!?! Um plano tão próximo da perfeição quase minado pela própria mulher! Como?!?! Torceram-se os dois em grandes “shhhhhhhhhhtttt”, mas ela não ouviu. Eles é que continuaram a ouvi-la enquanto fechava a janela:

«- Tenho que ser eu a fazer tudo nesta casa! Tudo, tudo, tudo…! Quem tinha razão era o meu Pai… Tudo, tudo, tudo…!»

Os resmungos do costume… Que passaram despercebidos quando os dois tontos se aperceberam que “janela fechada ao vento, noite pela certa ao relento".
Não importa. Estavam determinados em concretizar o plano inspirado por aquele Old No. 7.

Alcançaram o muro que separava os jardins. (Há sempre um muro! Abençoado!). A casa dos quarenta já pesava. Olharam para o muro, olharam um para o outro, e naquela cumplicidade tola e descabida disseram ao mesmo tempo:

«- Escadinha de ladrão?!»

Encavalitou-se o mais espadaúdo nas mãos do outro, ligeiramente mais avantajado, e galgou o bendito do muro. No lado de lá não caiu em pé. Tanto desequilíbrio, meu Deus…! O que tinha ficado do lado de cá riu e gozou, e o que tombou não gostou.

Amadores… Que diabo! Dá para levar isto com alguma seriedade?!

O que tinha galgado o muro correu – mas devagarinho, pezinhos que seriam de lã se não deambulassem ao cheiro do vinho – e dirigiu-se às telhas. Já não eram muitas. A chuva também se desfazia em pranto no telhado do vizinho.

Oito. Era o que havia. Era só o que precisavam.

Agarrou em quatro, correu para o muro, passou-as para o lado de cá para o outro agarrar. Voltou atrás para buscar as quatro que faltavam. Agarrou nelas, dirigiu-se ao muro (estava quase! quase, quase!), passou as telhas, empoleirou-se no muro (tão, tão quase…), e foi quando…:

«- QUEM É O CORNACA QUE INVADE O MEU QUINTAL?!?!?!»

Ui… Bot’abaixo! Rebent’a rolha! As telhas tinham dono e o dono tinha ouvidos de tísico! Nem récita, nem gato, nem mulher, nem janela, nem suspiro, nem pancadinha, nem escadinhas, se esgueiraram a tão vigilante sentinela.

Correm os dois malandros, partem-se as telhas no chão, caem os gatunos, mas logo se levantam, e correm, e escalam as escadas, e escondem-se, e batem com o nariz na janela, e correm para a porta, e arrombam a mula da porta, e UFA… Em casa.

Que sossego… Que segurança…

O golpe… Esse… Foi o mais absurdo da sua geração. Agora, é um pequeno alguidar pouco maior que um penico a amortecer a chuva nas noites mais agrestes que lhes atira à cara uma carreira à margem da lei que de patética teve tanto quanto de curta.

Dizem as más-línguas que a vingança já a embala o vizinho. Não dorme tão-pouco, embrenhado que está em torná-la magnânime. E macaco seja ele, não é tarde nem é cedo, se aquele alguidar um dia não vai beber a água que escorre do seu próprio telhado.

Afinal de contas… Ladrão que rouba ladrão

Thursday, May 15, 2008

O Livro do Doutor Octávio

A Rua Conde Sabugosa continua igual. Desde há muitos anos. Ali meio escondida nas traseiras da Avenida de Roma, um movimento meio confuso de pessoas entre o Pingo Doce e aquele semi-estacionamento no meio do nada – que parece atrapalhar mais do que arranjar lugar, a pouca seriedade do Cotton Club sobre um tradicional Sapateiro, buzinas e manobras estranhas, a clandestinidade apenas de um Coffee & Pot num canto, no outro a montra do café do Centro Roma.

Era aí que estava. Sentada à janela. Sozinha. Na roupa chorava o seu luto.

Há pessoas que nos deixam memórias muito queridas. O Doutor Octávio e a Dona Maria Luísa sempre foram assim. Sempre houve qualquer coisa na voz de um e de outro de muito acolhedor. Desde que por aquelas ruas me passeava pela mão da Avó Graça e o nosso passeio encontrava o deles. O Doutor Octávio muito cavalheiro. A Dona Maria Luísa muito meiga.

« - Olá Dona Maria Luísa. Lembra-se de mim?»
« - Oh, claro que me lembro!»
« - Estava a passar e via-a aqui à janela, então vim dar-lhe um beijinho…»
« - E fizeste tu muito bem!»

Sentei-me um bocadinho. Contou-me como estava. Como já tinha estado pior. Tinha os olhos tristes, mas havia algo de forte no seu estado de espírito. Havia energia na sua voz.

Contou-me que tinha almoçado tarde com uma amiga, que depois se tinha sentado a tratar da correspondência do Ministério da Justiça e que agora estava a ler um bocadinho.

« - Este foi o último livro que o Octávio leu… Disse-me que tinha gostado muito e que eu tinha que lê-lo. Só agora é que consegui pegar nele. E estou a gostar... Queres ver? Ele sublinhou e fez aqui umas anotações…», contou-me, acariciando aquele livro gordo de páginas com as suas saudades.

Eu tinha um preconceito em relação a escrevinhar o que quer que fosse nos livros. Sentia que estava de alguma maneira a faltar ao respeito a esse “objecto imaculado”. Esse preconceito já não o tenho. Perdi-o...

Perdi-o quando a Dona Maria Luísa me mostrou o livro do Doutor Octávio.