Friday, March 07, 2008

Vai ficar tudo bem... Isso eu sei...

À Primavera florida,
Só fica bem o sorrir,
Na Primavera da vida,
Mágoas não deves sentir
.”

Trocam-nos as voltas todas, são maus e é uma chatice.
Tenho uma folha de papel numa mão, na outra aperto com força uma mão-cheia de lápis de cor. Faço um rabisco aqui e um rabisco ali, e não me sai nada. Se é desalento não sei.
Tenho a janela à minha frente, que me traz mais cores do que os meus lápis de cor. Sou uma tonta distraída. Ponho-me a olhar para a rua, procurando o passarinho que me assobia por cada fresta, e não vejo nada porque não estou a olhar. O mundo da minha janela é pouco mais do que vazio, perdeu-se nos devaneios da minha insegurança. Tocam à porta, não é para mim. Cheira a almoço quentinho e caseiro, não vem do meu fogão. Sinto as paredes a vibrar com música, não é da minha aparelhagem (não tenho aparelhagem).

Então volto a uma história qualquer.

Naquele tempo, os caminhos eram de terra e erva, não eram cinzentos. Escorregava-se nas pedrinhas, não no alcatrão. As roupas também tinham poucas cores, mas nem por isso eram menos bonitas. Eram até mesmo muito bonitas. Era uma pequena aldeia, esculturas de fumo fugindo pelas chaminés, candeeiros a óleo contando as casas, música dançando de uma flauta qualquer…

Nesta história havia pessoas pequeninas. Homenzinhos de cachimbo pendurado nos lábios e aconchegado em bigodes farfalhudos. Mulherzinhas de cesto debaixo do braço, cesto de fruta, de bolos, de roupa, e sabe-se lá mais o quê, flores espreitando por detrás da orelha, bochechas rosadas do vento e do frio. Criancinhas correndo e saltando, gritando e gargalhando, pintando, enfim, a pequena aldeia com aquelas tintas fortes que se espremem de um tubo chamado infância.

Nesta aldeia os dias eram todos iguais. As pautas eram certinhas, a vida levava o seu ritmo, e ninguém saía do tom. Não havia cordas para desafinar. Não havia como fugir ao tempo rotineiro. Não havia a incerteza do inesperado. Nem a inespera do incerto. Era – chamemos-lhe – uma linha recta. Não havia curvas, não havia desvios.

Não havia Medo também.

O Medo só apareceu um dia. Nem sequer estava escuro. Nem sequer estava chuva. Nem sequer trovejava. Mas, pé ante pé, o Medo apareceu. Só porque sim. Porque queria que todos soubessem que ele existia. Maldade… Eles estavam tão melhor sem saber do Medo medonho que os fazia medrosos.
O Medo guardava um segredo.

Ora com o Medo, desenho feio e desagradável, aqueles homenzinhos, mulherzinhas e criancinhas pequeninas conheceram a Mão. A mão do outro, do vizinho, do amigo. Aquela. Aquela Mão que está sempre à mão. Aquela… Aquela Mão que estende a mão. E essa Mão era robusta, gorducha, larga, áspera até, mas nem por isso o seu toque deixava de ser simpático e macio.

Então com a Mão eles conheceram a Força. Pesada e bem-disposta. Essa vontade vaidosa, caprichosa, hiperactiva. A Força que fortalece quem se julga menos forte. A Força que sopra com mais força do que os sopros que querem derrubar a mais fortalecida fortaleza.

E não é que a Força os apresentou à Coragem?!

Bendita a hora! Desceu o vento, correram cavalos, esvoaçaram aves, abanaram-se as árvores. A Coragem tinha chegado à aldeia.
A Coragem também tinha um segredo.

O segredo da Coragem era conhecer bem e de ginjeira o segredo do Medo. A Coragem sabia qual era o único medo que amedrontava o Medo. O único medo de que o Medo tinha medo era de não ter coragem para enfrentar a Coragem.

Tolos passeios de palavras…

A verdade é que quando os homenzinhos bigodudos, as mulherzinhas bochechudas e as criancinhas criançudas descobriram que o maior medo do Medo era não ter coragem para enfrentar a Coragem, encheram-se de Coragem, deram um pontapé ao Medo, e voltaram à sua pacata vida na sua pequena aldeia… esculturas de fumo fugindo pelas chaminés, candeeiros a óleo contando as casas, música dançando de uma flauta qualquer…

Soneca… “Vai ficar tudo bem… isso eu sei…”